quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Protagonista contra o mundo

   
    Assistindo ao filme “The Matrix” e comparando com a leitura da novela “O Alienista”, pude notar duas visões antagônicas de loucura e realidade; na última, a humildade na relação com o mundo ao redor – quando todos os outros são loucos, é mais sensato aceitar-se como tal, e atestar a sanidade do meio. No primeiro, a pílula vermelha o lança a uma realidade mais profunda, da qual todo o mundo de fachada está privado. Uma elite de rebeldes descobre-se como libertadora de uma humanidade submetida ao mundo de máquinas.

A sensatez de Cypher pode ser resumida em poucas palavras: “se cheira como picanha, parece picanha e tem gosto de picanha, é picanha, então é melhor retornar à Matrix”. Se os cinco sentidos dizem o mesmo sobre o mundo exterior, não há razões para duvidar deste: é mais sensato duvidar de si mesmo.

    A preocupação com o bem-comum superou – em quase todas as épocas e sociedades – a preocupação consigo. Os dias atuais e a filosofia de Stirner parecem inverter essa ordem: tendo de escolher entre o que é melhor para o todo e o que for melhor para mim, pior para o mundo, sob um sutil verniz abstrato: “pela paz mundial”, “pela libertação de todos da Matrix” – o protagonista egoísta deve sempre agir com um verniz de bem maior, ainda que falso.
    
   Sócrates, ainda que tivesse a razão, beberia da cicuta quantas vezes fossem necessárias para não abalar a ordem da Pólis. O Sócrates contemporâneo não se submeteria a isso: que a Pólis seja destruída. O renegado defensor da verdade formaria seu próprio exército para conquistar Atenas. Este é o espírito que reina desde a revolução francesa de forma muito mais sutil: antes, o que conferia a redenção ao indivíduo rebelado era a veracidade das suas ideias ante a injustiça da sociedade ao seu redor; hoje, a Vontade suprime qualquer validação universal de verdade e se impõe na luta do sujeito contra o seu meio social. O Dr. Simão Bacamarte aceitou a sua loucura ao notá-la. Neo negaria até a morte que estivesse louco, sob efeito da pílula vermelha. "A culpa é da Matrix". 

     Não muito diferente dele é o protagonista de "Memento". Neste filme, o protagonista representado por Guy Ritchie sofre de amnésia anterógrada, sendo incapaz de adquirir novas memórias, lembrando-se do evento que causou isto: uma briga na morte de sua esposa por um homem chamado "John G". Não podendo reter novas informações, ele desenvolve um método capaz de acumular dados sobre o caso: tatuagens, pedacinhos de papel, de forma que ao ir ao restaurante não sabe exatamente o porquê: apenas seguia instruções que seu "Eu" de quinze minutos atrás deixou, com informações úteis. Em sua busca, ele não se importa quantos John G's falsos possam morrer ou quanto estrago possa realizar com informações falsas. Ele está certo em vingar sua esposa, e o mundo ao seu redor mente ao chamá-lo de insano. Sem rumo nem memórias, a incapacidade de levar a vida adiante o faz achar um sentido apenas na execução do suposto homem - de novo e de novo - mas qualquer um pode ser esse homem.

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