quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Onde Chesterton encontra o Pequeno Príncipe

     “Pra quê?” perguntava a criança ao professor. Em seus tantos empregos e anos de profissão, quantas vezes um professor ouviu essa pergunta? Onde o mundo moderno se orgulhava por ter aviões, trens, milhões de flores no jardim ou economizar 53 segundos ao buscar água, o Pequeno Príncipe se indagava pra onde iam com tanta pressa. O assustador era constatar que o próprio piloto não sabia.

        Isso já foi observado por Chesterton. O perspicaz autor inglês questiona no começo de “Hereges” o conceito moderno de “eficiência”.  Sem um destino certo, um X no mapa, de que serviria ser mais rápido, mais eficiente? Tecendo pesadas críticas a Bernard Shaw que tanto defendia o “progresso”, não via sentido nesse termo sem definir em direção a que se desenrolava esse progresso. O homem antigo duvidava de sua capacidade, mas não de seu objetivo. O homem moderno não duvida tanto de sua capacidade, mas não tem um objetivo.
Perguntar “para quê?” em todas essas ocasiões deve conduzir o indagador a um conjunto de valores e coisas que são boas e desejáveis em si mesmas. Sem isso não faz sentido buscar sentido. Um viajante que pegue uma estada em direção a Roma deve ter um objetivo em Roma: não faz sentido buscar um caminho para um caminho, para um caminho...”Se um homem não sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe será favorável.”

            Para que o Pequeno Príncipe queria aquela flor? Não havia uma razão para além da flor: a própria flor era motivo pelo qual ele a desejava. Infelizes eram as 40.000 flores que só serviam para que o dono exibisse seu lindo jardim. É aborrecedor que um jovem em 2015 pergunte “pra quê” alguém quer filhos, quando estes são desejáveis por si mesmos. “Eu quero filhos pelos filhos, ora.” A fuga teleológica não pode durar: no fundo ela guarda uma gama de preferências e valores, buscados em si mesmos e não para outra coisa. Nesse sentido, o capitão óbvio tem razão: precisamos repetir o óbvio para nos certificarmos de que ele ainda é o óbvio. Esquecê-lo é colocar fogo em Roma. De que servem foguetes, aviões, metrôs e outros tantos meios de transportes pra Roma sem Roma?

Ninguém duvida que Auschwitz fosse eficiente, nem que os alemães tivessem os mais eficientes soldados, médicos, armas...mas em que direção? Quando a indagação “pra que serve?” antecede “O que é?”, a própria serventia perde sentido.

Reconhecendo um ressentido

       Em todas as camadas das sociedades, em todas as épocas, ao lado dos tiranos, próximos dos heróis aristocratas e dos camponeses, estava a figura do ressentido. O ressentido se camufla perigosamente: pode ser a pessoa aparentemente mais virtuosa. É especialmente comum em frases como “o que importa é o coração”, “o essencial é invisível aos olhos”. O histórico de um ressentido é sempre o de comparação com alguém: as notas de outro, a beleza de outro – aparentemente o ressentido não tem um caminho próprio, uma identidade, uma personalidade. Uma das formas mais asquerosas de obter atenção é através da pena. Ninguém gosta de ver o mais forte agredindo o mais fraco, a mais bela escarnecendo a mais feia, o mais poderoso oprimindo o mais débil. A reação gerada é tão perigosa, ou até mais venenosa que a situação original: o ressentido quase sempre se esconde atrás da máscara de fraqueza, de feiura, de debilidade para obter poder.
    
  Uma mulher casta pode se orgulhar de sua castidade dizendo ser uma virtude cultivada...mas pode também ser tão sem qualidades que foi incapaz de atrair quem quer que fosse. O homem que vocifera contra a canalhice de seus compadres, em terem diversão desregrada com diversas mulheres pode ser um indivíduo incapaz de conquistar uma companhia para si. O homem pobre pode dizer o quanto o rico é mesquinho, e ser, ele próprio, tão mesquinho quanto: mas sem a fortuna necessária para ostentar poder. O fraco pode ser tão cruel quanto o mais forte, mas incapaz de exercer poder sobre quem quer que seja.

         Qualquer que seja o ressentido, ele pode, estando em grupo, espalhar a mediocridade entre seus pares e sob a alegação de vingar o mal causado pelo par oposto – o aristocrata sádico – substituir uma tirania por outra pior. O império dos ressentidos é facilmente reconhecido pela modéstia e incapacidade: Misses universos feias, maus administradores, péssimos cozinheiros, tudo com uma ostentação de humildade e virtudes imaginárias. Qualquer reação ao horror dessa nova ordem, deve gerar um comentário do tipo: “mas como assim, você está tentando humilhar o fulano? É nisto que consiste a morte a morte da aristocracia: música e artes horríveis, PhD’s analfabetos, especialistas de porra nenhuma e um coro de mimados ressentidos reagindo a qualquer um que tente atestar o óbvio – o morto importa mais que o atestado de óbito.

Protagonista contra o mundo

   
    Assistindo ao filme “The Matrix” e comparando com a leitura da novela “O Alienista”, pude notar duas visões antagônicas de loucura e realidade; na última, a humildade na relação com o mundo ao redor – quando todos os outros são loucos, é mais sensato aceitar-se como tal, e atestar a sanidade do meio. No primeiro, a pílula vermelha o lança a uma realidade mais profunda, da qual todo o mundo de fachada está privado. Uma elite de rebeldes descobre-se como libertadora de uma humanidade submetida ao mundo de máquinas.

A sensatez de Cypher pode ser resumida em poucas palavras: “se cheira como picanha, parece picanha e tem gosto de picanha, é picanha, então é melhor retornar à Matrix”. Se os cinco sentidos dizem o mesmo sobre o mundo exterior, não há razões para duvidar deste: é mais sensato duvidar de si mesmo.

    A preocupação com o bem-comum superou – em quase todas as épocas e sociedades – a preocupação consigo. Os dias atuais e a filosofia de Stirner parecem inverter essa ordem: tendo de escolher entre o que é melhor para o todo e o que for melhor para mim, pior para o mundo, sob um sutil verniz abstrato: “pela paz mundial”, “pela libertação de todos da Matrix” – o protagonista egoísta deve sempre agir com um verniz de bem maior, ainda que falso.
    
   Sócrates, ainda que tivesse a razão, beberia da cicuta quantas vezes fossem necessárias para não abalar a ordem da Pólis. O Sócrates contemporâneo não se submeteria a isso: que a Pólis seja destruída. O renegado defensor da verdade formaria seu próprio exército para conquistar Atenas. Este é o espírito que reina desde a revolução francesa de forma muito mais sutil: antes, o que conferia a redenção ao indivíduo rebelado era a veracidade das suas ideias ante a injustiça da sociedade ao seu redor; hoje, a Vontade suprime qualquer validação universal de verdade e se impõe na luta do sujeito contra o seu meio social. O Dr. Simão Bacamarte aceitou a sua loucura ao notá-la. Neo negaria até a morte que estivesse louco, sob efeito da pílula vermelha. "A culpa é da Matrix". 

     Não muito diferente dele é o protagonista de "Memento". Neste filme, o protagonista representado por Guy Ritchie sofre de amnésia anterógrada, sendo incapaz de adquirir novas memórias, lembrando-se do evento que causou isto: uma briga na morte de sua esposa por um homem chamado "John G". Não podendo reter novas informações, ele desenvolve um método capaz de acumular dados sobre o caso: tatuagens, pedacinhos de papel, de forma que ao ir ao restaurante não sabe exatamente o porquê: apenas seguia instruções que seu "Eu" de quinze minutos atrás deixou, com informações úteis. Em sua busca, ele não se importa quantos John G's falsos possam morrer ou quanto estrago possa realizar com informações falsas. Ele está certo em vingar sua esposa, e o mundo ao seu redor mente ao chamá-lo de insano. Sem rumo nem memórias, a incapacidade de levar a vida adiante o faz achar um sentido apenas na execução do suposto homem - de novo e de novo - mas qualquer um pode ser esse homem.